O Menino, a Bicicleta e o Natal da Esperança
Uma história de superação, generosidade e a magia do Natal
Ele era gordo, branco como um lençol, cabelos pretos e liso escorrendo na testa, parecia Oliver Hardy, o humorista, o volumoso da dupla, o gordo e o magro. Sua barriga saía da camiseta, em contraste com as crianças mirradas, descamisadas e bronzeadas da rua. Nunca ficava sem camisa, mesmo que estivesse um calor sufocante, ele estava vestido, pois, tinha vergonha de mostrar a enorme saliência que carregava na pança. Comia sem parar, nos bolsos da sua bermuda carregava várias guloseimas: balas, pé-de-moleque, pirulitos, chicletes, paçoca de amendoim e biscoitos. E não dividia com ninguém, comia tudo sozinho, era um guloso. Mas ele tinha um pai que todas as crianças desejavam, dono de uma bicicletaria.
Ele pouco aproveitava. As crianças da rua menos ainda: até nos aniversários, ao invés de dar um presente, ele distribuía o cartão de visita da loja do pai. E escrevia em letra de forma: Meus parabéns! Desejo a você um feliz aniversário com muita saúde e alegria.
O Bola, como nós o chamávamos na rua, tinha um imenso talento para a crueldade. Havia vingança nos olhos, comia todas as guloseimas sem nunca compartilhar com os amigos da rua, chupava as balas fazendo barulho, jogava a embalagem amassada aos pés dos meninos, demonstrando desprezo e deboche.
Ele detestava as crianças porque elas eram magras, corriam, pulavam e cantavam alegres como se fossem pássaros livres na natureza, enquanto que ele, sentado no portão de sua casa, parecia um lutador de sumô.
Eu era um menino de rua, vivia na casa de um cuidador, porque a minha mãe, coitada, não podia me criar, ela trabalhava de cozinheira e eu não tinha pai, então ela me deixava na casa de uma família. Se minha genitora não conseguisse pagar a tempo, o protetor me devolveria, como se eu fosse um objeto defeituoso.
Como qualquer garoto da minha idade, eu sonhava em ter uma bicicleta. Minha mãe não poderia me dar uma e eu nunca ousaria pedir ao meu cuidador. Na casa do meu protetor, não havia Natal, presentes, ceia ou almoço, nem um pinheirinho para enfeitar com as bolas coloridas. Por causa da religião, sua família não se reunia para celebrar o nascimento de Jesus Cristo. Todos tinham que se deitar às 22 horas. Eu me perguntava, será que o Papai Noel se lembraria de mim? Como gostaria de ter uma bicicleta nesse Natal. Caso isso acontecesse eu seriai a criança mais feliz do mundo. Desejava tanto andar de bicicleta que não me importava em pedir uma emprestada, chegando até a implorar por uma das três que Bola tinha.
Até que veio para ele o magno dia de começar a exercer sobre mim uma tortura psicológica. Informou-me que possuía, sim, três bicicletas. Disse-me que eu passasse pela sua casa no dia seguinte e que ele me emprestaria uma.
Até o dia seguinte eu me transformei na própria esperança da alegria: eu não vivia, eu boiava num mar suave, as ondas me levavam e me traziam.
No dia seguinte fui correndo à casa do Bola. Ele não me mandou entrar. Olhando em meus olhos, informou-me que o pneu da bicicleta estava furado, seu pai iria reparar, e que eu deveria retornar em outra ocasião para buscá-la. Triste, saí devagar, mas em breve a esperança de novo me tomava todo e eu recomeçava a caminhar e pular, era o meu modo estranho de andar pela rua. Guiava-me na promessa que o dia seguinte viria e começaria a andar de bicicleta
Mas não foi simples assim. O plano secreto do Bola era tranquilo e diabólico. Na outra manhã eu estava na porta de sua casa, com um sorriso e o coração batendo célere de ansiedade. Para ouvir a resposta calma: o meu pai não remendou o furo do pneu, porque está com muito trabalho, pediu que eu voltasse no dia seguinte. Mal sabia eu que o drama do “dia seguinte” se repetiria,
E assim continuou. Quanto tempo? Não sei. Ele estava ciente da incerteza do tempo, esperando que toda sua amargura se dissipasse de seu corpo volumoso. Comecei a suspeitar que fui escolhido para experimentar sentimentos, até nutria tal ideia. No entanto, durante meus momentos de reflexão, cheguei a uma conclusão: parece que quem quer me prejudicar precisa que eu sofra, simplesmente para o seu próprio prazer.
Quanto tempo? Eu ia diariamente à sua casa, sem faltar um dia. A cada dia que passava, ele surgia com uma nova justificativa. Ontem à tarde meu pai consertou o guidão, mas percebeu que precisa ajustar a corrente, por isso, temos que esperar. Retorne amanhã, é provável que a bicicleta esteja pronta. Eu sabia que ele mentia, pois, ficava vermelho como um tomate.
Na véspera do natal, enquanto eu estava à sua porta, aceitando sua rejeição, seu pai apareceu. Ele devia estranhar a aparição diária daquele menino à porta de sua casa. Pediu explicações a nós dois. Houve uma pausa silenciosa, entrecortada de palavras pouco esclarecedoras. O senhor achava estranho o fato de não estar entendendo. Até que esse bom pai entendeu. Voltou-se para o filho e com enorme surpresa exclamou: essa bicicleta está perfeita, sem nenhum problema mecânico, pronta para andar, e você filho nunca quis pedalar.
Em um tom de introspecção, o que mais afligia este homem não era o desvendar dessa situação. Ele se deparou, com um sobressalto de horror, com a verdadeira face do filho que gerara. Nos observava em um silêncio inquietante: a manifestação do lado obscuro de seu descendente, até então desconhecido, e a figura do garoto parado à porta, exaurido, exposto ao vento frio da rua, deixou-o indignado. Foi nesse ínterim que, conseguindo se recompor, pronunciou-se de forma firme, porém serena, para o filho: agora mesmo você vai emprestar a bicicleta. E voltou-se para mim, e disse: “E você pode ficar com ela o tempo que desejar.” Entenderam!? Isso significava mais do que apenas receber a bicicleta; usá-la "quando quisesse" era tudo que alguém poderia desejar.
Como posso retratar o que aconteceu a seguir? Uma avalanche de sentimentos inundou meu coração ao tocar no guidão da bicicleta. As articulações das palavras tornavam-se impossíveis. Fui tomado de um profundo silêncio. Aconcheguei-me no assento e embarquei em um passeio sereno. Quanto tempo levei para chegar a casa? Não sei. Fui conduzido pelo sopro do vento, tal como um veleiro guiado no mar. Naquele Natal, minha felicidade era inesgotável, e nutria o sonho de um dia possuir minha bicicleta.
Nossa, que leitura mais linda. Gostei muito!! ❣️
Muito bom 👍