O Garçom de Alfama
Um encontro de sotaques
Certa vez na primavera de 2001, a estação ideal para visitar Lisboa. As gaivotas levantavam voo marcando o adeus ao outono e inverno, e os bandos de andorinhas anunciavam a iminente chegada do verão.
Nos jardins urbanos, as Bougainvílleas exuberantes, também conhecidas como "primaveras", adornavam os muros com seus vibrantes tons de laranja-escuro, rosa carmim, ouro, violeta, amarelo e verde limão. Por toda parte, desabrochava o cravo vermelho, um ícone da liberdade em Portugal. De uma beleza incontestável, era impossível não associá-lo à Revolução dos Cravos, aquele 25 de abril pacífico que, com a força de uma flor ofertada aos fuzis dos soldados, derrubou décadas de ditadura sem derramar uma gota de sangue. "Foi bonita a festa, pá! Fiquei contente. Ainda guardo renitente. Um velho cravo para mim", parecia sussurrar o poeta em cada pétala vibrante.
Zeca e sua esposa, Hilda, um casal de emigrantes brasileiros em Lisboa, hospedavam os amigos Calvente e Marli, que estavam de férias e decidiram passar uns dias na capital portuguesa. Calvente e Zeca haviam sido colegas de trabalho durante oito anos. Embora tivessem seguido caminhos diferentes — Calvente se aposentara, Zeca decidiu viver e trabalhar em Portugal —, a conexão duradoura entre eles permanecia.
Numa noite encantadora lisboeta, os casais resolveram desfrutar de um jantar em um tradicional restaurante português. Escolheram o renomado "Fado da Morgadinha", situado próximo ao majestoso Castelo de São Jorge, célebre por seus concertos no jardim. O restaurante ficava no bairro de Alfama, a região mais antiga de Lisboa, que ostenta uma história rica, reconhecida como refúgio para os judeus no passado. O nome "Alfama" tem origem árabe, "Al-Hamma", que significa "fonte de água quente".
Chegaram ao restaurante cedo e selecionaram um lugar privilegiado, perto do palco onde a apresentação ocorreria. Ao fundo, uma placa pedia: "Silêncio, por favor, para ouvir o Fado". A mesa estava arranjada apenas com um cardápio, quatro pratos, talheres e guardanapos. Acharam estranho e chamaram o garçom.
Acenando para o empregado de mesa, que logo se aproximou, Zeca disse: "Boa noite, por gentileza, poderia nos trazer mais três cardápios? Porque temos apenas um disponível na mesa."
— Boa noite, meu nome é Gabriel e é um prazer servi-los nesta mesa. — Ele se aproximou, um sorriso amigável nos lábios. — Percebi que vocês são brasileiros. Por qual motivo precisam de cardápios adicionais? Se todos são idênticos, não seria suficiente apenas um? — ele questionou.
Os quatro acharam o comentário do garçom bastante original e riram. Com sua cortesia e polidez, Calvente disse: "Gabriel, seria mais conveniente para nós se pudéssemos debater as opções antes de selecionarmos o nosso jantar."
— Ora, pois! Aqui estão mais três cardápios! — distribuiu um para cada pessoa na mesa. — Como mencionei, todos são idênticos, estão a ver?
"Nós queremos comer bacalhau, qual é a sugestão da casa?", disse Zeca.
— Estão a ver como não são necessários mais menus! Posso apresentá-los ao melhor prato de bacalhau em Lisboa. — Os casais se divertiam com os trejeitos de Gabriel, que, sem perder o ritmo, continuou: — Recomendo o bacalhau, preparado ao nosso estilo da Morgadinha. Este peixe é assado na brasa, regado com azeite, acompanhado de ovos cozidos, batatas 'ao murro' e o saboroso legume, grelos. É uma delícia! E, por favor, em nome de Nossa Senhora de Fátima! Não comprometam este prato maravilhoso com arroz e feijão. Vocês, brasileiros, têm o hábito de combinar tudo com esses dois alimentos. Aqui é diferente! Vocês têm que se adaptar ao meio, não o meio a vocês. Provem a culinária portuguesa que é saborosa. Quando voltarem para a terra de vocês, retornem para arroz e feijão. Outro detalhe importante: para harmonizar com o bacalhau, vinho verde ou branco. Para quem não aprecia essas opções, pode-se optar por um tinto. Lembrem-se, o vinho do Porto é um digestivo, servido após a refeição. Estão a perceber, pá!
"Que tal servirmos como entrada pão, manteiga, queijo de cabra, azeitonas e presunto pata negra, enquanto os pratos principais estão sendo preparados?", disse Gabriel.
"E o bolinho de bacalhau, não faz parte da entrada?", indagou Hilda
É necessário esclarecer um detalhe: o que vocês denominam de pastel, nós nomeamos como bolinho, e o que designamos como bolinho, vocês reconhecem como pastel de bacalhau. Uma coisa não tem nada a ver com a outra coisa. — disse Gabriel sorrindo.
Os quatro se divertiram com a fala do garçom e concordaram em pedir o mesmo prato e entrada, sugerido por Gabriel.
Enquanto aguardavam o jantar, a conversa dos quatro, inevitavelmente, deslizou para o acontecimento que pesava sobre Portugal nos últimos dias: a tragédia da ponte Hintze Ribeiro, que desabara no Douro uma semana antes, levando consigo 59 vidas. O luto ainda era palpável, mesmo que o presidente tivesse pedido o encerramento público do assunto.
O copeiro, ao passar próximo à mesa, interrompeu a conversa. Todos voltaram sua atenção para Gabriel, que pediu licença e disse: "Peço desculpas, mas para nós, portugueses, o que aconteceu foi uma tragédia que será difícil de esquecer. Choramos muito, pois somos poucos. Já vocês, brasileiros, quando enfrentam uma tragédia, choram menos, pois são muitos." Ele deixou a mesa e seguiu para atender outros clientes. Os quatro permaneceram em silêncio, refletindo sobre as palavras que foram ditas.
Após alguns minutos, o empregado de mesa chegou com os pratos. Assim que os posicionou nos devidos lugares, ele se dirigiu aos brasileiros e disse: "Prestem atenção no que vou dizer. São nove horas, é o horário em que servimos o jantar. Às dez horas, haverá uma apresentação de fado. É uma música de tom melancólico e cansativo. Um horror! Portanto, sugiro que encerrem o jantar antes da apresentação e retornem às vossas moradas, pois durante a audição, não realizamos atendimento nas mesas."
"Gabriel, viemos aqui para degustar um bom bacalhau, saborear um vinho português e ouvir o fado", disse Calvente.
— Claro! Como vocês dizem na vossa terra: Aguenta coração!
O fadista subiu ao palco acompanhado por um músico no violão e outro na guitarra portuguesa. O restaurante, embora pequeno, era aconchegante, com suas paredes adornadas de azulejos brancos e azuis. Durante a performance musical, o silêncio preenchia o ambiente. "Fado", palavra originária do latim, significa "destino". A música evoca uma ampla gama de emoções: desde o amor e desamor, passando pelas desgraças, nostalgias e saudades, até a alegria e o humor. Alguns sugerem que o fado nasceu dos cânticos dos mouros.
Assim que terminou a apresentação, Gabriel aproximou-se da mesa para recolher os pratos e brincou: "E então, sobreviveram? Uma noite aguentamos, mas quem trabalha aqui está cansado e não suporta mais o fado. A música de vocês, o samba, o carnaval, todas são animadas e populares. Agora, vamos para a sobremesa. Devo avisar que é muito doce. Insuportável! Cinquenta por cento é feito de ovos e o restante de açúcar. É enjoativo e um perigo para os diabéticos. A não ser que vocês realmente gostem de doces. Eu sugiro uma fruta. O melão é uma delícia. Que tal?"
Todos solicitaram melão e aprovaram, pois estava doce como mel. Então disseram: "Gabriel, gostaríamos de um café, por favor." O garçom ouviu e respondeu: "Minha nossa senhora! Por que vocês não querem mais? Por que vocês, brasileiros, têm essa tendência de falar no futuro? Tem que ser: eu desejo um café. Ou, por favor, um café." Todos concordaram, riram e disseram: "Queremos café, por favor."
Enquanto aguardavam a chegada do café, Zeca recordava o estilo de comunicação dos lisboetas. "Para nós, parece presunçoso, mas não é", pensou ele. "Eles não costumam usar formas verbais no futuro ou gerúndio ao se expressarem. Nós falamos 'eu gostaria de um doce', eles diriam 'eu quero um doce'. Nós falamos 'o povo está chorando', eles afirmam 'o povo está a chorar'. É uma forma de comunicação direta e objetiva. E fazem piadas sobre nós, assim como nós fazemos sobre eles."
Zeca sorriu ao lembrar de uma ocasião. Um cidadão lisboeta indagara: "Como podem existir tantos corruptos no Brasil?" Ele havia respondido: "Nós somos os alunos que superaram os mestres." Noutro dia, um português perguntou: "Por que vocês brasileiros chamam o móvel de cabeceira de criado-mudo?" Zeca, que sabia a origem da denominação, decidiu fazer uma brincadeira. Afirmou: "Esse móvel recebe este nome porque observa e escuta tudo em silêncio, sem revelar nada a ninguém." O lusitano riu muito e exclamou: "Vocês, brasileiros, são incríveis!".
Gabriel chegou trazendo na bandeja uma garrafa de vinho do Porto LBV (Late Botle Vintage) que fica quinze anos armazenada num barril de carvalho. Essa bebida alcoólica possui um corpo robusto e um sabor delicioso, dando a impressão de ter sido aromatizada com chocolate, mas é a essência da madeira do carvalho que proporciona esse toque. Ele disse: "Para meus amigos brasileiros, o néctar do vinho do Porto". Todo amável. E os quatro degustaram aquele delicioso vinho.
Quitaram a conta e expressaram a gratidão pela atenção e pelas sugestões recebidas. Deixaram uma gorjeta a ele. Mas antes de sair, Hilda se dirigiu ao garçom, e disse: "Menino, você é muito ansioso e estressado. Deveria tomar um calmante, como um Xanax, por exemplo. Eu tomo este tranquilizante todos os dias e não vejo efeito. Sabe por quê? É a maneira como nasci e cresci. É assim quem eu sou, Gabriel!"



Os portugueses (e europeus, em geral) usam uma linguagem bastante objetiva, sem tantos floreios e rodeios como os brasileiros e as conversas são mais literais, sem lugar para o "conheço, mas não sei quem é" 8-). Portugal é um país que vale a pena (e o dinheiro) conhecer.
Obrigado por compartilhar!
Muito boa crônica, estou a ir para Lisboa depois de amanhã, vai me acompanhar...obrigada