Jamais ganhei um prêmio em rifa, loteria ou jogo de azar. Nem mesmo encontrei algo de valia na rua, cédula ou moeda. Parei de opinar sobre o resultado da partida de futebol com os amigos, pois não acompanho campeonato nem possuo time favorito. Houve tempo, por divertimento, de apostar em um resultado, sem dinheiro, uma sugestão no placar. Os erros vinham, e eu perdia. Então adotei uma estratégia: quando alguém me perguntava "Zeca, qual o resultado do jogo de hoje?". Eu respondia: "Dois zeros." O amigo questionava: "Para qual time?" Eu replicava com um sorriso: "Um zero para cada." Com essa resposta que desanimava, que fugia ao ponto, o tempo passou, e ninguém mais pedia minha opinião sobre as partidas de futebol.
Conheci pessoas viciadas que tentaram me levar a esse caminho. Ninguém, porém, conseguiu me animar ou convencer dos benefícios dessas apostas, fortuna sem trabalho, na pura sorte do acaso. Meus amigos com vício em apostas, no dia do jogo ou sorteio, no horário da transmissão, com rádio no ouvido, não havia conversa. A concentração impedia o contato. O mundo podia cair, o telefone tocar, alguém chamar, e eles não atendiam. Via nos semblantes desses conhecidos, semanas e anos a fio, o rosto do apostador, a ânsia, a espera de fortuna no dia seguinte, que jamais acontecia.
Meu ceticismo pela variedade das apostas vem de não conhecer nenhuma pessoa que ganhou, alcançou riqueza e vive com prosperidade. Ou, se teve quantia de dinheiro de peso em aposta, emudeceu com medo dos pedidos de empréstimos. Em reportagens nos jornais ou na televisão, vi gente que ganhou, que saiu pelo mundo gastando, vivendo tudo ao limite, como se o amanhã não existisse. Tempos depois, voltaram às suas casas, bolsos vazios, sem nenhum tostão. Tiveram seus dias de riqueza, mas com a eternidade não existe. O dinheiro acabou, partiu como uma nuvem que se desfaz.
"Mas um dia, onde menos se esperava, o inusitado se fez presente. Um acontecimento singular, para o qual só encontro uma maneira de expressar: 'Achei um livro'."
Cheguei à rodoviária alguns minutos antes. Ao verificar o placar de embarque, vi que haveria atraso de uma hora. A notícia me prendeu ali, sem rumo. Procurei assento para esperar o início da viagem. Lugares existiam. Eu queria um lugar longe da agitação das pessoas. Encontrei-o nas duas fileiras ao fim, nos fundos, junto à parede. As cadeiras estavam todas desocupadas. Nesse local, eu podia esticar as pernas, com apoio da mala, e aguardar o embarque enquanto fazia releitura do livro que trazia comigo. Nesse canto com isolamento, com quietude, encontrei um lugar para releitura do meu livro com calma. Mas, ao me acomodar, na cadeira em frente ao meu lugar, meus olhos se prenderam em um pacote: um livro de capa cor de terra.
O livro de capa marrom chamou minha atenção. Era de alguém. Fiquei ali, em observação, aguardando o dono surgir. Ideias passavam: uma saída apressada, o ônibus a acenar, o livro esquecido na pressa; ou pausa para café, o retorno a acontecer, a leitura a convocar. Os minutos seguiam. Ninguém aparecia. Lugares próximos, vazios. Naquelas fileiras do fundo, eu esperava só.
Em minhas mãos, o livro que me acompanhava, "Muito Além do Amor", de Dominique Lapierre. A obra que tocou fundo, sobre a dignidade do ser e o servir, a luta contra a AIDS, o esforço dos que cuidam. Com a história de Lapierre na mente, minha atenção voltou para o volume de capa cor de terra. Uma força invisível me puxou, como um ima. Peguei-o. Senti o papel sob os dedos. A capa sem inscrição, sem figura. Um objeto com simplicidade que me falava. Aquele encontro, ali, no meio da espera, ganhava peso. Não era apenas livro deixado, mas algo que me atraía, um mistério a se mostrar. Abri-o com cuidado. A surpresa me tomou. O livro era '1984', de George Orwell, edição de 1949. Eu já o conhecia. Uma obra de ficção que, para mim, nos dias de hoje, tornou-se uma realidade. Um mundo sem luz, sob domínio total. Leitura com poder, que assusta, sobre controle total, manipulação da verdade e a fragilidade da liberdade do ser. Um aviso com impacto.
Enquanto folheava o livro '1984', uma senhora, vestida com uniforme de cor preta da segurança da rodoviária, se aproximou e disse: “Boa tarde. É o senhor que deixa na cadeira os livros para as pessoas lerem?”
A pergunta me lançou em espanto. Respondi: “Não. Até gostaria, pois achei a ideia cativante.”
“Há tempo tento descobrir o benfeitor. Já li muitos livros que ele ou ela deixaram nesse banco, mas nunca consegui descobrir quem era. O passageiro pega o livro e começa a ler, como é leitura com interesse, que prende a atenção, leva para seguir a leitura durante a viagem. E, ao retornar da sua jornada, deixa o exemplar no mesmo banco, para outros terem a oportunidade de ler,” disse a senhora da segurança.
“Mas ninguém leva para si o livro?”
“Aí eu não sei responder. Porque um livro sempre está à disposição na cadeira, com a encadernação de mesmo feitio. Algumas pessoas me entregam o exemplar, e eu falo que é para deixar onde encontrou, para as pessoas lerem. Ou eu mesma retorno para o lugar que estava. Outros deixam no guichê dos achados e perdidos da rodoviária, e a segurança retorna para o seu lugar no assento. Como um livro sempre está, já pensamos que era alguém da própria estação rodoviária que o deixasse. Mas não é,” disse a senhora da segurança.
“Que gesto de beleza que essa pessoa está fazendo,” disse para a segurança. “Ainda bem que existem pessoas nesse mundo com desprendimento material sem igual. Ao olhar ao redor, vemos a maioria das pessoas com cabeça baixa, olhando o celular. Poucas vezes se vê alguém com um livro.”
“É verdade,” respondeu a senhora.
“Na cidade de Amsterdã, na Holanda, nas praças da cidade, existe uma estante de livros para os moradores. São os moradores que deixam os exemplares. As pessoas retiram, leem e depois repõem no lugar. Isso poderia ser feito aqui na rodoviária, o que a senhora acha?”
“O senhor não é o primeiro a ter essa ideia, já foi apresentada à administração da rodoviária. Como existe contrato de exclusividade dos lojistas, a não permitir concorrência, a livraria e a banca de jornais foram contra.”
“Lamento. Eu mesmo deixaria livros aqui para os passageiros lerem enquanto aguardam seus embarques.”
“Não só o senhor, como muitos outros com quem conversei. Preciso fazer minha ronda. Tenha uma leitura agradável e uma boa viagem.”
“Foi prazeroso falar com a senhora e obrigado pela sua atenção.”
A ideia me agradou muito. Quis participar, deixando o livro “Muito Além do Amor” para os passageiros. Mas comecei a refletir sobre essa questão. O livro é um documento do trabalho que médicos, enfermeiros, cientistas e voluntários fizeram em busca da origem do vírus HIV até sua descoberta e solução, onde na contracapa há fotos dos profissionais que trabalharam nessa missão de dificuldade. Com passagem com força sobre como os médicos e enfermeiros faziam para recolher material para estudos entre os grupos com maior vulnerabilidade à AIDS.
No coração da "Cidade da Alegria", em Calcutá, onde a pobreza aperta e a dor se espalha com a chegada da AIDS, o livro "Muito Além do Amor" revela a figura de Madre Teresa. Dominique Lapierre desenha-a como um farol de dedicação. Sua presença emerge como um gesto de serviço sem medida, cuidando com amor dos doentes, um alento em tempos de medo. Ela se move entre os aflitos, uma mão que oferece ajuda e esperança, transformando a realidade mais dura. Sua obra, lado a lado com médicos, freiras e voluntários, se torna um testemunho profundo da dignidade humana e do valor do servir. Madre Teresa, na narrativa de Lapierre, é a força que nutre a vida, mesmo quando a escuridão avança.
A dificuldade restante para deixar esse livro no assento da rodoviária era minha história com esse exemplar. Comprei o primeiro volume um dia após a entrevista do Jô Soares com o escritor Dominique Lapierre, em 1991. Ao longo dos anos, por conta, adquiri cinco volumes e emprestei todos. Ninguém me devolveu. Eu não cobrei, porque, com o pensamento como o meu, o livro tem tanta grandeza que amigos se apoderaram. O que me sobrou, trinta anos depois da edição do livro “Muito Além do Amor”, era um exemplar que consegui achar num sebo com estado de uso aceitável. Se o deixasse ali, com dificuldade encontraria outro.
Pelo autofalante da rodoviária anunciaram o embarque para plataforma 16. Deixei o livro '1984' no assento e segui viagem. Enquanto caminhava para o embarque, pensava em qual livro poderia deixar para leitura dos passageiros na rodoviária. Dois livros me vieram à mente: “O Velho e o Mar”, do escritor Ernest Hemingway, ou então “O Amor nos Tempos de Cólera”, do escritor Gabriel García Márquez. Dois romances de excelência, ganhadores do Prêmio Nobel de Literatura. Um deles eu iria preparar com encadernação cor de terra e deixá-lo no assento da rodoviária.
Uma semana depois, de volta da viagem, fui ao local onde deixei o livro '1984'. Meus olhos buscaram o assento. Nenhuma forma ali. O livro não estava mais lá. O vazio não significava perda. Era um sinal: aquele presente, que não se esperava, além das rifas e loterias, seguia viagem em outras mãos. Então, algo brotou. O assento, palco daquela descoberta, agora era meu ponto de partida. Essa, sim, era a fortuna que me cabia semear.
Estimado leitor, caso deseje ler o livro “Muito Além do Amor,” posso enviar o ebook para o seu email.
Costumo me desfazer de livros que não pretendo reler. Às vezes, os "abandono" em estações de metrô ou terminais rodoviários. Sua linda crônica me deu um gostinho da sensação que leitores apaixonados podem ter tido ao encontrar volumes deixados por mim. Obrigada por isso!
Ops!
...classifica*...